Calculadoras Eletrônicas
Mudando a Abordagem da Matemática
Caminhava pelos corredores da escola quando vi, através de uma porta entreaberta, um colega de Matemática ensinando aos alunos extraírem o valor aproximado de uma raiz quadrada utilizando o algoritmo do carroção. No intervalo das aulas, fui conversar com o professor questionando-o sobre o porquê ensinar um método tão cansativo aos alunos se nós já dispúnhamos de calculadoras. Ele retrucou que o aluno poderia não ter uma calculadora nas mãos na hora em que precisasse do valor da raiz. Bem, é mais fácil ter uma calculadora nas mãos do que uma caneta, quanto mais com a generalização das celulares, que tem a calculadora como um de seus recursos.
Nunca veremos a revolução social ocorrer através da escola. A escola é um aparelho ideológico do Estado, uma reprodutora de valores. Isso não significa que a escola não tenha historicidade. É incabível imaginar que a realidade contida dentro dos muros da escola é disjunta daquela que se encontra do lado de fora. O mundo gira, e a escola tem que rodar com o mundo. Apesar disso, talvez por comodismo ou pela inércia das engrenagens que movimentam a máquina escola, parece que há um esforço para o isolamento das instituições, como se houvesse uma redoma isolando a escola do mundo.
Estava trabalhando com cônicas em uma escola particular na Zona Sul do Rio de Janeiro e, para ilustrar o que estava sendo estudado, apresentava o movimento dos astros no espaço. Deixei para abordar o fenômeno do eclipse solar justamente em um dia no qual ocorreria um. Preparei um monte de chapas de radiografia para que os alunos pudessem olhar para o Sol sem risco para as vistas e fui pedir à coordenação para ir com a turma ao pátio observar o eclipse. A coordenação recusou dizendo que isso iria tumultuar a escola e parar a aula. Argumentei que eu estava exatamente abordando o fenômeno, mas isso não demoveu a coordenação. Voltei para a sala e retornei ao eclipse no quadro-negro, enquanto um eclipse ocorria no pátio da escola. Eu já havia visto exatamente esse fato em uma ilustração do livro Cuidado, Escola!, mas eu pensei que fosse uma metáfora.
Um dos maiores exemplos da dificuldade que as escolas possuem de assimilar as transformações do mundo foi o advento do vídeo cassete. Nunca consegui entender como se continuava fazendo muitas descrições, como, por exemplo, dos biomas brasileiros, tendo a possibilidade de apresentar as imagens dinâmicas das descrições. Os vídeos chegaram, desapareceram e, quando muito, tangenciaram os trabalhos nas escolas.
A Matemática nas escolas não passa ao largo dessa inércia, mas a força da História é maior que a resistência. Os logaritmos foram criados para servirem de calculadora. Eles transformam multiplicações em adições, potenciações em multiplicações, eles descem o nível de dificuldades das operações. Até o fim da década de 1970, boa parte do esforço dos professores de Matemática na primeira série do Ensino Médio se concentrava no ensino de logaritmo. Com a popularização das calculadoras, essa função do logaritmo tornou-se obsoleta. Se eu tiver que ensinar como se usa a tábua de logaritmos, terei que recordar. A régua de cálculo nem se fala, eu nunca aprendi a usá-la, era um instrumento caro e, quando cheguei à universidade, as calculadoras já estavam ficando populares.
Tanto o conteúdo abordado nas escolas quanto os métodos de abordagens dos conteúdos sofrem alterações devido às exigências sociais. Inclusive eu não sou favorável a separar tão categoricamente conteúdos de métodos. Qualquer tópico que se desenvolva em Matemática (ou em qualquer outra disciplina) nasce vinculado a um método de apreensão, de entendimento, de aprendizagem. Não existe conteúdo sem método. Conteúdo desvinculado de um método é uma abstração que só tem a função de organizar a Disciplina. Estudar um conteúdo de acordo com um novo método é estudar novamente o conteúdo. De forma análoga, é defensável que o método sem um conteúdo é uma abstração com função taxonômica. Deveríamos criar a expressão "conteúdo-método". Mudanças no conteúdo ou no método (método-conteúdo) geram uma nova Matemática. As escolas sofrem transformações em suas abordagens por influências sociais. Portanto, as escolas estão, permanentemente, ensinando novas Matemáticas. Isso justifica as diversas vezes que escutei reclamações de avós e pais que não conseguiam ensinar aos netos e filhos porque tinham aprendido outra Matemática. Eles tinham razão.
As calculadoras eletrônicas geram uma nova Matemática. A primeira calculadora científica que tive foi uma Texas TI30, que eu comprei em 1979, usada, de um colega na universidade. Era uma calculadora que tinha visor com luzes de neon e usava bateria de nove volts. De lá para cá, as transformações foram tremendas. As calculadoras tornaram-se muito baratas e todos os celulares dispõem de calculadoras comerciais e científicas. Não há motivo para evitar o uso de calculadoras. Eu acredito que o único lugar no qual ainda se faz contas de dividir usando o algoritmo tradicional da divisão seja nas salas de aula. Nem os professores, fora das salas de aula, deixam de usar calculadoras. Entretanto, devem-se explorar os potenciais dessa nova Matemática que a calculadora gera, e não tentar fazer o que era feito antes dela usando esse novo instrumento.
Era comum aos alunos perguntarem se podiam usar calculadoras nas avaliações. Eu sempre respondia com outra pergunta: posso montar uma prova para ser respondida com calculadora? Resolvi adotar calculadoras nas avaliações. Como havia o argumento de que os concursos públicos não permitiam o uso de calculadoras (argumento que eu só consigo justificar pela economia de trabalho por parte das operadoras de concursos), combinei com os alunos que uma avaliação por bimestre seria sem calculadora. Para não limitar a calculadora ao uso das quatro operações, eu tinha que trabalhar as possibilidades que as calculadoras apresentavam. Decidi usar calculadoras comerciais no Ensino Fundamental e calculadoras científicas no Ensino Médio. Comprei diversas marcas de calculadoras tanto comerciais quanto científicas e comecei a estudar suas funções. As calculadoras comerciais não trouxeram problemas, todas tinham praticamente o mesmo programa. O que distinguia uma das outras eram as teclas de memória, problema totalmente contornável, e a presença, ou não, da tecla de raiz quadrada. Para contornar esse último problema, eu dei a "volta na pedra": pedia para que os alunos adquirissem uma calculadora com a tecla de raiz quadrada. Já as calculadoras científicas apresentavam uma variedade de funções imensa. Havia calculadoras alfa-numéricas (calculadoras que aceitavam textos em língua corrente), calculadoras com muitos níveis de memória e calculadoras que traçavam gráficos. Se eu permitisse que cada aluno usasse a calculadora que bem entendesse, quem tivesse dinheiro para comprar a calculadora mais sofisticada sairia na vantagem. Resolvi padronizar as calculadoras, todos usariam a mesma calculadora. Fui a uma papelaria perto da escola e escolhi uma calculadora barata que todos os alunos comprariam. Cabia ao dono da papelaria providenciar o estoque da calculadora escolhida que se faria necessário, o que ele fez com todo o prazer (ganhei muita calculadora das papelarias, eu acho que eles gostavam de mim). Para a calculadora comercial, criei um material que orientava o seu uso. Para as científicas, como a calculadora escolhida mudava de um ano para outro ou de uma escola para outra, eu trabalhava sem material impresso.
Eu mantinha sempre um estoque de calculadoras para emprestar aos alunos que esqueciam a sua ou para aqueles que, por algum motivo, as calculadoras apresentassem problemas. Em uma avaliação não era permitido emprestar a calculadora, elas possuem memória, muito menos usar a calculadora dos celulares, por motivos óbvios.
Trabalhar com calculadoras é bem distinto do trabalho com lápis e papel. Uma calculadora com oito dígitos trabalha somente com números racionais no intervalo de - 99 999 999 a + 99 999 999, e não são com todos eles. Ela não registra qualquer fração que gere dízimas periódicas. A fração 1/3 aparece como 0,3333333, uma aproximação. Todo número com mais de sete casas decimais, em uma calculadora de oito dígitos, é uma aproximação. As calculadoras científicas obedecem à ordem das operações aritméticas. Se for digitado 2 + 2 ÷ 2 em uma calculadora científica, ela retorna como resultado 3, o que é o correto. Entretanto, na calculadora comercial isso não acontece, ela realiza as operações na ordem em que forem digitadas. Assim, 2 + 2 ÷ 2 tem como retorno 2, o que está errado. A ordem das operações deve ser forçada na comercial. Essas e tantas outras características próprias das máquinas me levaram a criar um material para abordar o tema com os alunos.
As tecnologias modernas, na qual se incluem as calculadoras, são expansões de nossas limitações e criam possibilidades que seriam impensáveis sem elas, mas jamais serão a panaceia da Educação. Serão sempre mediadoras das Relações Humanas, o lugar no qual se concretiza a Educação.