Contos e Contas

27/01/2021

Escrever: ato ou efeito de significar o mundo. 


Em qualquer livro didático de Língua Portuguesa, encontramos que a função fundamental da linguagem é a comunicação. Eu discordo. A função precípua da linguagem é a significação do mundo.

Você vai a uma festa e fica lá durante duas horas e passa duas semanas falando com os amigos sobre a festa. Será que uma festa de duas horas tem tantos elementos para que se demorem duas semanas para descrevê-los? É que, de fato, você não descreve a festa. Você dá significado às coisas que aconteceram na festa. Por vezes, para ratificar o significado que você construiu, é necessário repetir o discurso, uma forma de defender o seu entendimento. Duas pessoas que tenham ido a mesma festa, dificilmente apresentarão a mesma "descrição". Falar é uma forma de construir significados, é uma forma de construir o passado.

O real é o presente, o agora. O passado só existe como discurso e o futuro como expectativa. Alguém vê a queda de uma pedra. Tira fotos, mede o tempo de queda e faz um esquema da trajetória da queda. Em seguida, ele conta a outra pessoa sobre a queda da pedra. Mostra a foto e relata suas observações e impressões. Qualquer relato sobre a queda da pedra não é a queda da pedra. É uma interpretação, uma significação da queda da pedra. A queda da pedra não existe mais. Pode-se largar a mesma pedra por uma segunda vez, mas essa não será a queda descrita. A queda da pedra é passado e só existe como discurso.

Muitas pessoas (inclusive eu) tem a mania de falar sozinho, conversar consigo mesmo. Falar sozinho é uma forma de organizar o pensamento, de dar significado a nossa vivência. Outras pessoas escrevem com o mesmo objetivo. Falar e escrever podem ter a mesma função, mas não são a mesma coisa. A palavra falada e a palavra escrita são registros distintos do idioma. Esses registros mantêm relações próximas, mas um não substitui o outro. Há quem seja bem-falante e não seja um bom escritor, e há quem escreva bem, mas não se expresse bem oralmente. As especificidades e permissividades distintas do registro falado e do escrito são bem percebidas por quem tenta transpor para o papel, com fidedignidade, uma entrevista oral. O texto escrito é mais rígido em suas regras, exigindo maior cuidado com o encadeamento das ideias. Além disso, o texto escrito, o vento não leva.

* * *

Muitos problemas matemáticos me levaram a produzir textos que apresentassem um enredo mais elaborado do que seu enunciado tradicional. A ideia era criar uma história que desembocasse no problema considerado. Em um dos cursos que fiz no IMPA, no horário do cafezinho, eu distribuía alguns desses textos aos colegas de curso. Isso acabou fazendo com que dois desses textos fossem publicados na Revista do Professor de Matemática - O Duelo de Galois e O Menino. Em 2004, a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação selecionou alguns dos melhores artigos publicados na RPM para compor um livro, e O Menino entrou na seleção. O Prof. Elon Lages Lima, indignado por terem publicado artigos seus nesse livro sem sua autorização, disse-me:

- Ledo, viu o que fizeram? Publicaram artigos meu e seu em um livro sem a nossa autorização. Temos que tomar alguma providência.

- Deixa-me ver se eu entendi. Existe um livro no qual eu e o senhor somos autores, ou seja, eu sou coautor seu?

- Isso!

- A quem eu devo agradecer?!

O tempo fez com que se acumulassem os textos que davam enredo a problemas. Escolhendo vinte e quatro desses textos, dei corpo a um livro intitulado Contos e Contas (que foi publicado pela Editora Dialética em 2022). Nesse livro, estou contando aos leitores minha visão da festa. Estou "descrevendo" a queda da pedra. Estou dando significado a uma parte de meu mundo que tanto espaço ocupou em minha vivência: os problemas matemáticos.


O Menino - Áudio-texto

Narração: Ledo Vaccaro

Participação especial: Marlene de Araujo

Música: Divertimentos 1 e 2, Wolfgang Amadeus Mozart 

               Interpretação de: Camerata Romana, dirigida por  Alfred Scholz

O Menino - Resposta - Áudio -texto

Pedro Malazarte e o Milagre dos Santos - Áudio-texto

Narração: Ledo Vaccaro
Efeito sonoro de feira livre: O Som da Cidade - Feira Livre. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=2o58MVoN-Wg  Acessado em 22 nov. 2021

Música: Chorinho do Pife, João do Pife e Banda Pife Dois Irmãos - do álbum Flutes from Brazil

Pedro Malazarte e o Milagre dos Santos - Resposta - Áudio-texto

O Duelo de Galois Áudio-texto

Narração: Ledo Vaccaro

Música: Tocata e Fuga, de J. S. Bach. 

Iterpretação obtida em https://www.youtube.com/watch?v=Nnuq9PXbywA&list=RDMMNnuq9PXbywA&start_radio=1

Acessado em 22 de nov. 2021