G-RIO

03/02/2021

Uma Proposta de Intervenção no Sistema Educacional


Boa parte dos professores que passam por nossas vidas deixam poucas marcas. Isso, em especial, na Universidade. Na minha graduação na UFRJ, eu era o aluno 079100398. Aprendi Cálculo, Análise, Álgebra com aqueles que ministraram os cursos, mas a maior parte deles, além das equações e gráficos, pouco ou nada acrescentou ou subtraiu à doação do pai. Entretanto, há alguns professores que interferem substancialmente na nossa forma de ver o mundo. Professores que merecem ser chamados de Mestres porque transcendem a minuta dos cursos. Esse é o caso do Mestre Roberto Ribeiro Baldino, com quem aprendi muito mais do que Matemática. 


Baldino desenvolveu a Pedagogia da Assimilação Solidária (AS), uma proposta de intervenção no Sistema Educacional. Julgo essa proposta uma das mais revolucionárias com que eu já tive contato, sobretudo, porque deslocava o foco da ação educativa da construção das competências individuais para o trabalho efetivo e coletivo. Minha identificação com essa proposta foi total, porque sempre acreditei (e continuo acreditando) que o trabalho é a única forma de transformar o mundo. Ideias, boas vontades, sentimentos e rezas só realizam alguma transformação quando fomentam mangas dobradas e suor gerado em esforços direcionados.

Para discutir e propiciar as transformações defendidas pela AS, foi criado o grupo G-RIO, ao qual eu me engajei já no início de sua formação. O texto básico da Assimilação Solidária é        "O Aluno Real", um livro que nunca foi publicado e que surgiu a partir de uma série de observações e gravações feitas pelo Mestre, antes da criação do G-RIO. Baldino e Charles Guimarães organizavam encontros no Sindicato dos Professores do Rio, as terças, à noite, para discutir uma proposta de intervenção na Educação. Estes encontros eram abertos a quem de bom grado chegasse. Participei de alguns destes encontros. Tais encontros acabaram e a continuidade da discussão passou a se dar no Colégio Estadual Amaro Cavalcante, aos sábados pela manhã, agora sem a presença do Charles, mas com a participação do Centro de Ciência do Rio de Janeiro. O Centro de Ciências entrava com o apoio no uso de materiais concretos (jogos estruturados) e como instituição oficial, visto que o G-RIO ainda não existia a não ser como nome e no que sempre o caracterizou: o trabalho. O nome G-RIO já era usado no Amaro Cavalcante e não se confundia com o Centro de Ciências. Desligando-se do Centro de Ciências, os encontros passaram a ocorrer no CIEP José Pedro Varela, no centro do Rio. As pessoas que se comprometiam com o G-RIO declaravam sua renda e dispunham 1% do que recebiam para manutenção dos encontros. O G-RIO não tinha qualquer instituição que o mantivesse, ele era mantido com 1% da renda daqueles que acreditavam na possibilidade de intervenção no sistema educacional que era discutida nos encontros.

Os encontros começavam às 8 horas com formação de pequenos grupos que trabalhavam com temas específicos: lógica, números inteiros, geometria plana, frações etc. Após uma parada para um café, formava-se o GRUPÃO, uma plenária com todos os presentes, no qual se discutiam casos ocorridos nas nossas práticas escolares, e os sucessos ou fracassos no uso, ou na tentativa de uso, da AS nas escolas. A AS foi sendo desenvolvida nestes encontros. Os textos produzidos pelos participantes, a grande maioria por Baldino, eram discutidos nos GRUPÕES. Tais textos tinham responsabilidade inicial de seus autores. Após discussão e burilamento, o texto passava a ser de responsabilidade do G-RIO.

Um dos textos, cuja responsabilidade inicial foi minha, propunha-se a apresentar os Pressupostos Teóricos e Princípios da Assimilação Solidária.

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G-RIO

CURSO DE TREINAMENTO PROFISSIONAL

Texto no 4 - 88 (Responsabilidade inicial de Ledo Vaccaro Machado)

ASSIMILAÇÃO SOLIDÁRIA

I. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

A proposta de ASSIMILAÇÃO SOLIDÁRIA não nasceu em laboratório de ensino para depois ser aplicada em classes experimentais. Ela nasceu no próprio dia-a-dia da sala de aula, procurando implementar medidas para resolver a tríplice contradição entre o aluno, o programa e as condições de ensino, tanto internas quanto externas à escola. As medidas adotadas foram evidenciando novas contradições e obrigando a reflexões, até entendermos que a tríplice contradição, não só não tem solução, mas é colocada para que, ao tentar resolvê-la, as pessoas continuem fazendo o necessário para que o ensino seja o que é.

Três são os pressupostos teóricos da ASSIMILAÇÃO SOLIDÁRIA:

  1. a escola existente desempenha o papel de reprodutora da ideologia dominante através de um processo de seleção, fundado na ideologia da "competência";
  2. esse papel se cumpre a partir dos efeitos de dominação e hegemonia inerentes às práticas vigentes no aparelho escolar;
  3. nessa conjuntura, o professor não é neutro em sua sala de aula, principalmente quando pretende sê-lo.

Na observância desses pressupostos, a AS é uma proposta de intervenção na escola a partir da sala de aula.

Não estamos propondo a revolução da sociedade a partir da escola. Propomos uma mudança da escola, uma mudança nas práticas sociais da escola, uma posição definida diante do pressuposto 3, uma posição política em que contaremos com aqueles que reconhecem sua não neutralidade e não compactuam com os valores apregoados pela escola, não compactuam com o modelo de homem (ou MENOS HOMEM) que a escola quer forjar.

Se fizéssemos a proposta de uma revolução social a partir da Escola, entraríamos em contradição, já que estamos definindo a Escola como aparelho ideológico do Estado, cuja função é reproduzir a ideologia dominante (pressuposto 1). A consecução de tal proposta exigiria a criação de uma não-Escola que, obviamente, não se coadunaria com a estrutura social, podendo existir somente de forma marginal ou clandestina. Entretanto, o Estado revela-se a partir de sua legislação e ele, no que concerne à educação, tenta dar forma ao papel referido no pressuposto 2. Aqui está a contradição do Sistema, através da qual propomos nossa ação: existe uma distância entre a legislação e os agentes de execução (professores e alunos). Por maiores ou mais eficientes que sejam os meios de controle sobre esses agentes, o gigantismo burocrático impossibilita o controle total, deixando brechas para propostas cancerígenas de reconhecimento da ideologia dominante e, consequentemente, de sua crítica efetiva.

II. PRINCÍPIOS GERAIS

Os seguintes princípios da AS foram definidos a partir de regras de trabalho elaboradas durante vários anos e sobre as quais, de um jeito ou de outro, eles sempre tiveram o primado.

  1. SUPREMACIA dos grupos sobre os indivíduos e do grupão sobre os grupos.
  2. AVALIAÇÃO DO PROCESSO de trabalho, não do produto final.
  3. MEDIDA DA DURAÇÃO do trabalho produtivo, não da competência atingida.
  4. Aumento da COMPETÊNCIA MÉDIA da turma, não da competência máxima de alguns.
  5. ACOMPANHAMENTO DO RACIOCÍNIO, não correção do resultado.
  6. Prêmios e sanções À TURMA E AOS GRUPOS, não aos indivíduos.

(BALDINO, R. R. - Manual de Assimilação Solidária 1986-87, G-RIO)

O princípio 1, intimamente ligado ao 4, já que aquele é meio para a consecução deste, propõe valores como o da não competição, o respeito à palavra do outro e a cooperação sem paternalismo. Dentro dos grupões, o professor se apresenta como mais um elemento, abrindo mão de qualquer "autoridade magistral", sem abrir mão de sua "autoridade pedagógica".

A avaliação do processo de trabalho e não do produto final, princípio 2, leva à distribuição de prêmios e sanções por observação dos fatos que ocorrem em sala de aula, no horário de trabalho, fatos bem mais controláveis que aqueles alheios ao ambiente de trabalho que, notadamente, influem de maneira decisiva no produto final.

O princípio 3, medida do trabalho produtivo, valoriza o trabalho em detrimento da competência adquirida e é defendido pelos mesmos argumentos usados para o princípio 2: a competência adquirida sofre influência decisiva de fatores externos ao ambiente de trabalho. Usamos o termo trabalho produtivo porque a medida da duração é feita em observância às normas da AS: não basta estar sentado, trabalhando; faz-se necessário o trabalho com regras pré-fixadas, regras em consonância com a AS.

O comum, no sistema educacional, é encontrarmos ações que buscam a criação da competência máxima de alguns. Se traçássemos um gráfico dos resultados das ações educacionais, encontraríamos curvas com picos de competência. Chegamos a escutar de alguns professores o absurdo de que trabalham somente com os alunos que "têm condições de aprender". Propomos uma curva em que os picos de competência sejam reduzidos e a base da curva seja ampliada. Para isso, é fundamental que o centro da pedagogia deixe de ser o programa e se transfira para o aluno.

Entendemos que a correção dos resultados, ou a apresentação da "resposta correta" é um boicote ao processo de construção do conhecimento.

O princípio 6, prêmios e sanções à turma e aos grupos, e não aos indivíduos, defende-se pela própria coerência com os princípios anteriores. Quando tal ação é executada, cada participante do grupo passa a responsabilizar-se não mais apenas por sua aprendizagem, mas pela construção do conhecimento de cada um de seus iguais. Estabelece-se, assim, obrigatoriamente, uma relação dialógica entre os participantes de um grupo e cumpre-se a construção do conhecimento do homem com o homem, mediatizado pelo mundo.

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A complexidade e desenvolvimento dos trabalhos levaram os participantes do G-RIO a decidir pela institucionalização dos encontros. Partindo de uma série de reuniões que ocorriam durante as tardes dos sábados, após os encontros do Curso de Treinamento Profissional, criou-se o Estatuto do G-RIO. Com isso, o G-RIO recebia sua certidão de nascimento. Ele não nasceu com o Estatuto. Ele nasceu do parto permanente realizado no trabalho de cada um.

Tivemos dificuldades no registro do Estatuto por ele não prever a existência de um presidente ou diretor. Tivemos que criar uma comissão de responsabilidade civil, que se reestruturava periodicamente.

Querendo manter o trabalho como base de definição do G-RIO, colocamos uma cláusula no Estatuto que autodestruía a entidade: se não ocorressem os encontros de trabalho e debate, os encontros de sábado, durante dois semestres consecutivos, o G-RIO automaticamente se extinguia. Alguns anos se passaram e acabamos por ter dois semestres sem encontros...

Implementei a AS no primeiro colégio do estado do Rio no qual eu trabalhei, o colégio Alice Paccine Gélio, em Belford Roxo. Nesse colégio havia o curso de Formação de Professores (antigo Normal) à noite, e eu trabalhava com todas as turmas. Após um ano de trabalho diferenciado nessa escola, a Secretaria de Educação enviou algumas pessoas para saber o que eu estava fazendo. Expliquei a proposta e como a estava desenvolvendo nas turmas sobre a minha responsabilidade. As pessoas da Secretaria propuseram que eu escrevesse um relatório ali, naquele instante. Eu respondi: "Esse trabalho é sério. Se vocês querem um relatório, vão me dar quinze dias e eu envio o relatório". Preparei um relatório de oitenta páginas, encadernei em capa dura e enviei à Secretaria. Dois anos depois, encontrei esse relatório jogado em cima de um armário. Creio que ninguém leu o relatório, mas ninguém mais perturbou o meu trabalho.

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No início dos anos 2000 fiz um curso na PUC-RIO chamado Currículo e Prática Educativa. Uma das disciplinas era Pesquisa em Educação, ministrada por Hedy Vasconcelos e Stella Cecília D. Segenreich. No trabalho final da disciplina, apresentei um resumo do que tinha feito no colégio Alice Paccine Gélio.


TRIBUTO AO MESTRE ROBERTO RIBEIRO BALDINO

A experiência que vamos relatar é parte do trabalho desenvolvido no Curso de Formação de Professores (Normal) no Colégio Estadual Alice Paccini Gélio, em Belfort Roxo, no biênio 1988/1989. Esta experiência desenvolveu-se durante todo os dois anos, mas destacamos um estudo do sistema posicional de numeração. Entretanto, o que nos interessa não é o conteúdo abordado, mas a forma através da qual este conteúdo foi abordado. Forma definida pela Pedagogia da Assimilação Solidária criada pelo Mestre Roberto Ribeiro Baldino, a quem presto tributo.

COMO TUDO COMEÇOU

Nos idos de 1986, o Mestre Roberto Ribeiro Baldino, do departamento de Matemática da UFRJ, organizou um centro de estudos, chamado G-RIO, ao qual passamos a fazer parte e atuar ativamente. Os participantes deste centro de estudo reuniam-se todos os sábados de 8 horas da manhã às 12 horas para discutir propostas de uso de jogos estruturados no ensino de Matemática e uma proposta pedagógica, desenvolvida pelo Mestre Baldino, chamada Pedagogia da Assimilação Solidária. Neste período tivemos acesso a dois textos do professor Baldino que nunca chagaram a ser publicados: uma análise chamada "O Aluno Real" e uma coletânea de textos a qual o mestre chamava de "Calhamaço". Baseado nestes trabalhos, produzimos um texto intitulado "Princípios e Pressupostos Teóricos da Pedagogia da Assimilação Solidária". Este último texto chegou a ser apresentado na Semana da Matemática da UFF na forma de produção de mimeógrafo, mas também não foi publicado. Os encontros no centro de estudos do G-RIO e o material escrito ao qual me referi, serviram-nos de subsídio para a elaboração e implantação da experiência que vamos relatar. Infelizmente, o material produzido pelo G-RIO e os textos do Mestre Baldino ao qual me referi, só existem em arquivos pessoais como os nossos e de tantos outros que participaram dos cursos do G-RIO, e não podem ser consultados abertamente por quem desejar; não existem como referência bibliográfica, mas são, por certo, referências biográficas de muitos que tiveram o prazer e a honra de conviver com Mestre Baldino no áureo período do G-RIO.

A DINÂMICA DA SALA DE AULA

A sala de aula era dividida em grupos de quatro ou cinco alunos. Os participantes de cada grupo sentavam-se ao redor de uma mesa e recebiam três fichas: uma ficha de contexto, uma ficha de trabalho e uma ficha de controle. Junto com estas fichas seguiam, ou não, materiais concretos, dependendo do que fosse ser trabalhado. Os participantes deveriam cumprir as tarefas propostas nas fichas de trabalho seguindo regras, quesitos, que eram estabelecidas na ficha de controle. Ao final de cada dia, os participantes preenchiam uma coluna na ficha de controle identificando se os quesitos ocorreram ou não. Os resultados dos registros feitos nas fichas de controle transformavam-se em notas ao final de cada bimestre. A cada dia, terminados os trabalhos em grupo, a turma sentava em círculo e avaliava o trabalho do dia, propunha a continuidade do trabalho e discutia assuntos gerais ligados à escola e à educação como um todo. A direção da escola tentava viabilizar ao máximo nosso trabalho, montando horários com três aulas seguidas e permitindo que juntássemos turmas. Era comum trabalhar a noite inteira com as três turmas juntas no pátio da escola.

Achávamos dificuldade de encontrar, no dia-a-dia dos alunos, elementos que nos permitissem, de forma rica e interessante, desdobrar o programa de Matemática ao qual estávamos atrelados. Optamos, então, por criar uma fantasia que serviria de contexto, de motivação para que os alunos se debruçassem sobre os problemas propostos. Esta era a função da ficha de contexto. Ela apresentava uma história que solicitava, para a sua continuidade, a solução dos problemas ou execução das tarefas que constavam na ficha de trabalho. Por exemplo, a primeira ficha de contexto do estudo do sistema de numeração posicional dizia ter sido encontrado, no apartamento de um senhor recém-falecido, um volume de uma enciclopédia, no qual se lia na lombada: "The First Encyclopaedia of Tlön - Vol. XI". Tlön era um planeta totalmente desconhecido e essa enciclopédia descrevia, com minúcias, seus rios, montanhas, civilizações, idiomas, ciências etc. Um dos verbetes deste Vol. XI era "numeração", no qual se discorria que um dos registros mais antigos do uso de numeração teria sido encontrado gravado em monólitos no vale de Comunal, entre os montes Sedentários, e estes escritos eram atribuídos à extinta civilização dos Talagomitanos. Partindo desta história, os participantes de cada grupo, teriam como tarefa a decodificação do que aparecia escrito nos monólitos. As fichas de trabalho encarregavam-se de encaminhar as atividades de modo gradual levando à comparação direta dos elementos de dois conjuntos, a comparação de dois conjuntos por intermédio de um terceiro usado como termo de comparação, e o registro das quantidades.

Junto com a primeira ficha de trabalho, era entregue a cada grupo certo número de cartelas nas quais constava a figura de um carneirinho branco e outras tantas com figura de carneirinho preto. A primeira tarefa dessa ficha era assim apresentada:

Sabemos que os talagomitanos, inicialmente, não possuíam sistema de numeração e nem símbolos para representar quantidades.

Como dois pastores (um de ovelhas brancas e outro de ovelhas pretas) poderiam afirmar qual dos dois possuía a maior quantidade de ovelhas?

A comparação um-para-um, quando não era de imediato apresentada, não demorava a surgir. Assim que essa questão fosse resolvida, era entregue ao grupo uma pequena sacola com grãos-de-bico. Seguia-se a segunda questão:

Sobre a mesa vocês encontram a primeira máquina de somar desenvolvida em Talagomes. Consistia em uma sacola na qual eram colocados pedras ou grãos.

Como um pastor poderia usá-la para se certificar que não houve extravio de ovelhas no pasto?

E assim os participantes prosseguiam atacando questão por questão. Uma das formas de ação perseguidas no centro de estudo do G-RIO era a ideia de que o professor deveria evitar, ao máximo, responder diretamente à pergunta de um aluno. A uma pergunta cabia outra pergunta que encaminhasse à resposta. Treinávamos este comportamento nos encontros de sábado pela manhã. Os alunos demoravam algum tempo para perder a estranheza diante desse comportamento.

As fichas de controle constavam de quatro quesitos que não deveriam ocorrer. Quatro quesitos que chamávamos de quesitos negativos, qualificações que os grupos deveriam evitar possuir:

Dispersão → quando o grupo discutia qualquer assunto ou realizava qualquer tarefa que não fosse pertinente à proposta de trabalho que estava sobre a mesa.

Dominância → quando um dos participantes do grupo assumia as tarefas, não ouvindo as opiniões dos demais e não permitindo a participação efetiva de todos os integrantes.

Apatia → quando um dos participantes cruzava o braço, não atuando nas discussões nem no desenvolvimento dos trabalhos.

Desintegração → quando o grupo se fragmentava com os componentes agindo individualmente ou em subdivisões do grupo.

A ocorrência de um desses quesitos fazia com que todos perdessem pontos. Desse modo, o comportamento de cada um era responsabilidade de todos os componentes. Uma falta que um cometesse prejudicava todo o grupo. É interessante notar que, no início dos trabalhos, as pessoas procuravam o culpado pelos erros, mas, no decorrer do ano, as falhas passaram a ser assumidas como falhas do grupo e não dos indivíduos. Outro ponto notável, e um dos que mais nos impressionou, foi o efeito desse trabalho sobre a presença dos alunos em sala de aula. Quando alguém faltava, o grupo, que era constituído pelos mesmos componentes durante algum tempo, era obrigado a retomar as atividades da aula anterior para que o faltoso chegasse ao ponto no qual se encontrava o grupo. Se assim não o fizesse, ocorreria, inevitavelmente, apatia ou desintegração. A falta de um participante acabava interferindo no desempenho de todo o grupo. Um dos alunos me relatou que, quando faltava à escola, ficava com a consciência pesada por atrapalhar os colegas. Foi registrado índice zero de falta nas três turmas de formação de professores no terceiro bimestre do ano de 1989 (lembremo-nos de que estamos falando de uma escola noturna, pública e em Belfort Roxo, Parque São Vicente).

A nota registrada nas fichas de controle era atribuída a todos os integrantes do grupo. Mas como os grupos mudavam de tempo em tempo, o nome de cada aluno aparecia em mais de uma ficha de controle e, ao final do bimestre, as notas terminavam por serem individuais.

A falta de um integrante do grupo não acarretava perda de pontos para o grupo, mas o faltoso perdia o direito aos pontos daquele dia.

Durante o primeiro mês de aula, as fichas de controle não computavam ponto, este era um mês de treinamento. A cada semana, um novo quesito entrava na ficha de controle e nós sentávamos, todos os dias, com cada grupo, para discutir a atribuição do + (não houve) ou do - (houve) a cada um dos quesitos.

Findadas as fichas de trabalho, todos sentávamos num grande círculo. Este momento era conhecido como grupão. De início, trazíamos textos para incentivar os debates. Usamos bastante textos tirados do livro Cuidado, Escola! (Harper, Babette; Ceccon, Claudius; Oliveira, M.D.; Oliveira, R.D. Cuidado, Escola! Desigualdade, domesticação e algumas saídas. Brasiliense, 1986), mas logo começamos a incentivar os estudantes a trazerem os temas de debate. No grupão também avaliávamos o trabalho dos grupinhos e as propostas encaminhadas pelas fichas. Nem sempre era possível formar o grupão, sobretudo por exiguidade do tempo, mas sempre que o formávamos, ele nascia com a ânsia dos relatos e com a riqueza da experiência de todos. Era sempre um momento meio mágico, prenhe de relacionamento humano.

CONCLUSÃO

Ao se ler o relato acima, pode-se ter a impressão de que foi encontrado, ou pelo menos que se chegou bem perto, do emplasto universal da educação, o remédio para todos os males. Infelizmente a proposta está, desde o seu nascedouro, bem distante disto. A proposta do G-RIO e da Pedagogia da Assimilação Solidária nasce como uma proposta de luta, impregnada de posturas ideológica, de comprometimento político com a emancipação do oprimido. Nasce com uma opção declarada pelo Ensino Público, lugar que reputávamos como único possível para uma educação verdadeiramente democrática. Dizíamos, na época, que não queríamos melhorar o ensino da Matemática, não queríamos melhorar a educação; queríamos redefini-la. Tal postura, com frequência, acabava por desafinar o coro dos contentes. Colocávamos para trabalhar todos os alunos em sala de aula, inclusive aquele que estava acostumado a pendurar-se na aba de chapéu alheio. A avaliação, enquanto atribuição de nota bimestral e aprovação, era feita exclusivamente através daquilo que era percebido em sala de aula: só contavam as notas das fichas de controle. E o aluno que, no ensino tradicional, conseguia sucesso através das provas cognitivas sem precisar apresentar trabalho em sala de aula? O que o levava a conseguir sucesso fugia ao controle: herança genética (?), origem social (?). Agora, esse aluno não só teria que apresentar trabalho como passava a ser responsável pelo bom desempenho de seus colegas, condição necessária para o seu próprio bom desempenho. A competência passava a ser posta a serviço do social. O saber nascia, como sempre, na relação do homem com o homem e, agora, tinha de ser posto a serviço da mesma relação. Críticas de alguns colegas também nunca faltaram. Seja pela inevitável comparação dos trabalhos, seja pelo sucesso (ou pela possibilidade de sucesso) de uma forma de trabalho que retirava do professor seu poder de detentor do saber, seja pela capacidade de argumentação que os alunos acabavam por adquirir (e esse era um dos registros de sucesso da proposta).

Infelizmente, o G-RIO esvaziou-se junto com o esvaziamento do ensino público. Registre-se que na época do G-RIO, meados da década de oitenta, existiam nove grupos de trabalho com Matemática (Educação Matemática (?)) no Rio de Janeiro. Este período coincide com os melhores salários e as melhores condições de trabalho que nós, pessoalmente, temos lembrança de ter vivido no magistério público. Mas não é possível deixar de acreditar numa educação emancipadora. Não é possível deixar de acreditar numa educação que leve o homem a perceber-se no outro, a perceber o outro como uma dimensão de si próprio. Pedindo licença ao poeta Paulinho Moska:

"Sonhos são como deuses: quando não se acredita neles, deixam de existir".

* * *

Após descrever minha participação no G-RIO, cabe uma nota post scriptum a guisa de esclarecer uma contradição que se apresenta entre o que eu defendo e as minhas práticas profissionais nesses anos todos de atuação.

Defendo que não deveriam existir escolas particulares. Todas as escolas da Educação Básica deveriam ser públicas e gratuitas. A única possibilidade de uma Educação democrática está na generalização da escola pública. Lia em um muro no Largo do Machado: "Democracia é todos partirem do mesmo ponto". Escutei em uma palestra de Hugo Lovisolo "Os homens só são iguais perante terceiros que os próprios homens criam". Os homens deveriam ser iguais perante o Sistema Educacional. A existência de escolas particulares e escolas públicas criam dois terceiros distintos que, na busca de gerar uma ilusão, são postos na mesma categoria: Sistema Educacional. Em terceiros distintos, a igualdade entre os homens não se estabelece, criando categorias distintas de cidadãos.

Por vezes ouvi dizer que a Educação no Brasil está falida. Em sã consciência, alguém pode acreditar que algo que envolve tanta gente, tanto esforço e tanto dinheiro continuaria existindo se não cumprisse sua função? A função não declarada do Sistema Educacional é a separação do joio do trigo, é a justificativa das diferenças sociais, é a justificativa do maior problema de nosso país: a superconcentração de rendas. O Sistema Educacional, nesse aspecto, cumpre magnificamente sua função e, para cumpri-la, a escola pública tem que apresentar qualidade muito inferior a da escola particular. O status do cidadão que frequenta a escola pública tem de ser inferior ao status daquele que está na escola privada. Dessa forma, um dos motivos da "falta de qualidade" da escola pública é a existência da escola particular.

Todas as escolas da Educação Básica deveriam ser públicas e gratuitas.

Aqui aparece a contradição a qual me referi no primeiro parágrafo. Como, defendendo a escola pública, passei a maior parte da minha vida profissional trabalhando em escolas privadas? Em qualquer sistema de produção, uma das condições básicas para a manutenção do sistema é que o trabalhador consiga reproduzir em seus filhos a sua força de trabalho. Os salários e as condições de trabalho do Sistema Público de Ensino não permitiriam que eu reproduzisse em meus filhos a minha força de trabalho. Acabei optando por dar aos meus filhos uma formação tão sólida quanto me foi possível. Livros, teatro, exposições, cursos são bens que custam dinheiro. Fiz essa opção. Hoje tenho dois filhos professores, dos quais me orgulho. Optei por conviver com a contradição.

O G-RIO ratificou minhas crenças. Continuo defendendo todas elas. Continuo acreditando que o homem só se faz Homem quando é capaz de se enxergar nos outros.