No Brasil
Aulas Ministradas no Gigante pela Própria Natureza.
Os Vicentinos desenvolviam um programa de assistência em pequenas cidades do interior da Bahia. O colégio São Vicente de Paulo organizava cursos de aperfeiçoamento de professores nessas cidades, particularmente nas cidades de Cocos e Carinhanha.
Cocos é uma cidade baiana localizada a 640 km de Brasília, e Carinhanha é uma cidade à beira do São Francisco a 620 km de Brasília. São duas cidades pequenas, como a maioria das cidades brasileiras. Em 2004, uma equipe de professores do colégio São Vicente iria, mais uma vez, à cidade de Cocos. Na equipe faltava um professor de Matemática e eu, apesar de não trabalhar no colégio, fui convidado a participar. O trabalho era realizado no esquema de voluntariado, os participantes não recebiam pelo trabalho, mas também não gastavam nada, todas as despesas eram pagas pelo projeto. A importância do trabalho e a possibilidade de conhecer uma parte do meu Brasil que dificilmente eu conheceria de outra forma foram suficientes para que eu aceitasse o convite. Fui com boa vontade e com a experiência de anos de atuação como professor. Voltei com a bagagem cheia de novos amigos e com uma percepção do que é a educação que só havia escutado ou lido em livros.
Boa parte de minhas lembranças sobre essas duas viagens (Cocos e Carinhanha) misturam-se e eu não consigo distinguir alguns acontecimentos que se deram em uma ou na outra cidade.
Partimos de avião até Brasília e, de lá, fomos de ônibus fretado até a cidade. Até Brasília foi fácil. O problema foi encarar horas (se não me engano foram 12 horas) de Brasília até a cidade em uma estrada cheia de buracos (ou em um conjunto de buracos com alguma estrada). Nas duas cidades, ficamos hospedados em casas paroquiais, não havia pousadas ou hotéis. A presença da Igreja era muito forte. Tive a impressão de que o pároco da região "mandava" mais do que o prefeito. As atividades assistenciais dos vicentinos iam para muito além da educação.
Os professores da região nos encontraram em uma escola e lá, após uma reunião de apresentação, foram divididos em grupos que assistiam às orientações de Português, Matemática, Teatro e outras disciplinas. Trabalhei com calculadoras eletrônicas, jogos estruturados e análise e construção de gráficos. Em uma das cidades, havia um único professor com terceiro grau. Esse professor havia feito o curso de Pedagogia à distância e dava aula de Português. Algo que me chamou a atenção foi a existência de professores que possuíam apenas o Ensino Fundamental e davam aula para o Ensino Médio. Se faltava a formação acadêmica, sobravam interesse e esforço.
Um relato que me deixou atônito foi o de uma professora que declarou que acordava de manhã, atravessava o rio, subia na boleia de um caminhão, ia com os trabalhadores rurais até o campo e caminhava até a "escola". Seu local de trabalho era uma sala com o chão feito de terra batida, um quadro-negro em uma parede e outro na parede oposta. Virados para um dos quadros ficava metade da turma, aqueles que cursavam a primeira e a segunda séries. Virados para o outro quadro, ficavam os alunos que cursavam a terceira e a quarta séries. Apresentando as dificuldades que enfrentava, perguntou-me o que poderia fazer para melhorar o seu trabalho. Não me lembro do que respondi, mas me lembro de ter a certeza de que eu estava diante de uma pessoa que tinha muito mais a me ensinar do que eu a ela.
Nos horários livres, nós, os professores do projeto, caminhávamos pela cidade. Caminhávamos não é bem o verbo a ser utilizado porque tínhamos de parar em todas as casas. Éramos os professores do Rio que estavam na cidade e os moradores faziam questão que conhecêssemos as suas casas. Nunca tomei tanto café e comi tanto bolo em uma única tarde. A recepção dos moradores era algo extraordinário.
Em Carinhanha, fui até a beira do Velho Chico, que, para mim, é um rio sagrado. Lá me deparei com as lavadeiras da beira do rio, grupo de pessoas que conhecia de leituras. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que algumas das lavadeiras eram professoras participantes dos cursos que estávamos ministrando! O Velho Chico sempre me reservou surpresas!
Voltei da viagem embevecido com o meu Brasilzão, mas, ao mesmo tempo, doíam-me as condições de trabalho e de aprendizagem que havia visto. Nós, professores das cidades grandes, parcamente temos a ideia do que é a Educação dentro do nosso país.
Pouco tempo depois de chegar ao Rio, encontrei com o professor Paulo Cezar Pinto de Carvalho e relatei-lhe minha experiência. Olhando-me com um sorriso de quem já sabia a resposta, perguntou-me:
- Quer ir para Tocantins?
Depois do convite feito pelo Prof. Paulo Cezar, lá fui eu para Tocantins.
A estrutura dos cursos ministrados em Tocantins era bem diferente da que eu encontrei em Cocos e Carinhanha. Os cursos faziam parte de um projeto que envolvia a Fundação Cesgranrio e a Secretaria de Educação de Tocantins, e o projeto era coordenado pelo Prof. Rubens Klein e pela Profª. Nilma Fontanive. Eu dividia a sala de aula com muitos professores universitários, boa parte deles da UFRJ, e eu era pago para participar do projeto.
Tocantins era um estado que apresentava paisagens que lembrava o cerrado. As cidades eram muito distantes umas das outras. Ir de uma cidade à cidade mais próxima não era dar um pulinho. Trabalhei em Palmas, cidade planejada e, naquela época, tão vazia que dificilmente você seria atropelado se atravessasse a avenida principal de olhos fechados, Porto Nacional, cidade histórica com uma magnífica igreja, Araguaína, banhada pelo rio Araguaia, e Guaraí, cidade na qual ministrei a maior parte dos cursos, dividindo o trabalho com a professora de Língua Portuguesa Maria Cristina Motta Maia.
Os professores que faziam parte do projeto se reuniam na Fundação Cesgranrio, recebiam orientações, produziam o material que seria usado e discutiam o desenvolvimento do projeto. Em uma de minhas viagens, eu dividi o trabalho com o Prof. Carlos Eduardo Mathias Motta, com quem, depois desse primeiro contato, dividi diversos outros trabalhos. Participamos das reuniões e levamos o material preparado, com antecedência, que seria usado nas aulas. Durante o voo a Tocantins, discutimos as possibilidades de, além do conteúdo, apresentarmos algumas metodologias de abordagens desses conteúdos e o que apresentariam com possibilidade de abordagem. Terminada a primeira parte da manhã, o cafezinho se fez presente e nós nos encontramos. Ele me perguntou o que eu tinha feito até então, e eu respondi:
- Amassei todo o planejamento que fizemos no avião e fiquei trabalhando só com o conteúdo.
E ele completou:
- Eu também.
Naquela primeira parte da manhã eu estava trabalhando com Geometria e, na sala na qual me encontrava, perguntei aos participantes com seria possível demonstrar a Primeira Lei de Thales (a soma dos ângulos internos de qualquer triângulo é igual a 180º). Nenhum dos participantes sabia demonstrar esse teorema. O grupo com o qual eu estava trabalhando era bastante heterogêneo, mas, de forma geral, o conhecimento formal da Matemática deixava muito a desejar (diga-se, de passagem, que isso não é uma característica apenas dos professores de Tocantins, em muitos cursos de aperfeiçoamento que ministrei essa característica era acentuada). O que mais me preocupou foi a desconsideração da importância da demonstração, da construção de um argumento que ratificasse uma afirmação matemática. Tais argumentos devem ser construídos inclusive na apresentação da resolução de um problema. Tão (ou mais) importante do que chegar à solução é apresentar o argumento que permitiu a solução. Diante disso, tanto o Mathias quanto eu optamos por centrar a atenção nos conteúdos.
Essa questão de considerar a construção do argumento como secundária é recorrente. No colégio Franco-Brasileiro, Rio de Janeiro, foi montada uma prova para selecionar um professor de Matemática para compor a equipe. A prova foi composta por quatro questões, cada uma delas pedindo a demonstração de um teorema. Um dos candidatos entregou a prova com uma única frase: "É um absurdo, em pleno século XX, pedir-se a demonstração de teoremas!"
Defendendo a importância da argumentação, no Ensino Médio do colégio Sion, houve uma reunião de pais com os professores para que esses pudessem apresentar os trabalhos que seriam desenvolvidos com seus filhos. A professora de Português falou antes de mim e, no meio de sua apresentação, declarou que sua principal preocupação era desenvolver nos alunos a capacidade de construir argumentos. Na minha vez, iniciei a meu discurso dizendo que a minha principal preocupação era desenvolver nos alunos a capacidade de construir argumentos. Os objetivos são os mesmos. O método e o suporte para a construção de argumentos são que se distinguem. Se não fosse a construção de argumentos, os livros de Matemática pareceriam com livros de receita.
Além de ministrar cursos de aperfeiçoamento de professores na Bahia e em Tocantins, tive a oportunidade de ministrar cursos no Rio Grande do Sul. Apesar de reputar como sendo de grande valia para minha formação essas participações, considero que pouco sei da realidade educacional desse nosso Brasil de proporções gigantescas.