SBEM
Fundação da Sociedade Brasileira de Educação Matemática
Em janeiro de 1988 foi fundada a Sociedade Brasileira de Educação Matemática e minha participação no processo de fundação foi considerável.
Um homem é reflexo de seu tempo e de seu espaço, e a sua consciência é formada na práxis, nas reflexões sobre suas participações. Poucas atuações na minha vida tiveram tanta influência na constituição de minha consciência quanto a fundação da SBEM.
Denizalde Jesiél Rodrigues Pereira, em 2005, defendeu a sua tese de doutorado: História do Movimento Democrático que Criou a Sociedade Brasileira de Educação Matemática-SBEM. Fui uma das pessoas a quem ele dedicou a tese. Já tive oportunidade de agradecê-lo pelo carinho e consideração dessa dedicatória, mas não o fiz. Aproveito para agradecer publicamente e elogiá-lo pelo excelente trabalho na tese. A integra dessa tese pode ser obtida em https://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/252962/1/Pereira_DenizaldeJosielRodrigues_D.pdf
Colaborei com a tese do Denizalde entregando-lhe documentos da fundação da SBEM que estavam comigo. Ao final da Plenária de fundação, muitos documentos foram deixados sobre a mesa da direção. O Prof. Roberto Ribeiro Baldino disse para que eu guardasse os documentos. Encadernei-os em dois tomos e eles ficaram comigo até o aniversário de 25 anos da fundação da SBEM, quando entreguei, oficialmente, todos os documentos à direção da entidade.
Ao final da Plenária de fundação da SBEM, disse que acabara de fundar uma sociedade da qual não faria parte. A bem da verdade, mais de 20 anos depois assumi uma função na Regional Rio da SBEM. Nessa ocasião, minha participação foi exígua, praticamente não fiz nada. Cheguei a participar de uma ou outra reunião, mas minha atuação foi insignificante, em nada comparável com o que fiz durante o processo de fundação.
Além da entrega de cópias dos documentos a Denizaldo, ele me entrevistou, isso em 2004. A entrevista são as memórias de minha participação, e a exposição de minhas memórias é o objetivo desse trabalho. Assim, ao invés de apresentar o que me lembro hoje, vou transcrever a íntegra da entrevista, até porque, da data da entrevista para cá, muitas coisas se perderam nas brenhas da memória.
A Entrevista
No dia 29 de maio de 2004, fui ao Rio de Janeiro participar do I Encontro Nacional Contra a Reforma Universitária proposta pelo Governo Federal. Aproveitei para ir ao Rio e trazer de lá cópias de documentos, Atas, que o professor Ledo Vaccaro havia me prometido; documentos que ele se deu o trabalho de guardar, inclusive de mandar encadernar como brochura. Combinamos de nos encontrar no Rio para eu fazer as cópias. Chegando, liguei para o Ledo. Ele aproveitou que passaria próximo à UFRJ, onde se daria o Encontro, e me fez o grande favor de fazer ele mesmo as cópias; então combinamos de nos encontrar aí mesmo no local do Encontro. Tentei sugerir um esquema de nos encontrar, mas ele garantiu que não precisaria de esquema algum, pois um cidadão com 1,90 m com um chapéu "Panamá", só teria ele, então o reconheceria, como de fato aconteceu. Eu estava preparado para, caso houvesse a possibilidade de uma Entrevista, que ela ocorresse. Felizmente o professor Ledo pode dispor de meia hora de conversa. A Entrevista ocorreu concomitantemente à Abertura do Encontro. De onde nos encontrávamos, podíamos ouvir os Conferencistas. Meia hora foi o suficiente para que revelasse detalhes que não foram lembrados pelos entrevistados anteriores, peculiaridades que só um jovem professor apaixonado, à época da criação da SBEM, poderia preservar carinhosamente em sua memória. O que digo, pode ser confirmado nas linhas que seguem.
Ledo: O que você quer fazer?
Deniz: Vai falando de memória o que você lembra e aí eu vou fazendo perguntas conforme o que já estudei, as dúvidas que eu tenho, as indagações que ainda quero fazer; vai falando o que você lembra, como era o processo...
L: Como era o processo? A formação da SBEM foi uma grande experiência pessoal. Foi uma grande experiência pela forma através da qual se desenvolveu. Nós tínhamos um sistema no qual qualquer pessoa podia apresentar propostas sobre a formação do Estatuto. Aí, nós recebíamos as propostas do Brasil inteiro e uma Comissão de Sistematização tentava organizá-las em grupos de afinidades, para conseguir dar uma redação que seria levada à Plenária. O sistema de criação da Sociedade Brasileira de Educação Matemática foi extremamente democrático, apesar de se perceber que existia um grupo que tentava dar uma estrutura à Sociedade Brasileira de Educação Matemática, que seria uma estrutura de grupo...
D: Elitista.
L: É, elitista!
D: É a expressão que o Baldino utiliza, elitista.
L: Elitista.
D: O Bigode também.
L: Havia um grupo que tentava fazer isso, mas não funcionou, porque se conseguiu elaborar alguns Princípios; inclusive, impressos nos cartazes estão os Princípios. Quando eu estava vindo para cá, logo após tirar xerox[1], fiquei folheando e lembrei de uma das coisas que se conseguiu logo no início: estabelecer princípios para a formação da Sociedade. Esses princípios exigiam a formação de uma Sociedade democrática. Todo cartaz começou a sair com esses Princípios impressos.
D: Isso foi na Plenária Final do I ENEM. Foi a Tânia Campos, Maria Laura; foram quatro pessoas que saíram da Plenária. Eu estudei essa parte nas Atas do Movimento Pró-SBEM. Saíram da Plenária e voltaram; foram delegados a escrever esses Princípios e foi o que orientou toda a construção dos Estatutos.
L: Esses Princípios ajudaram bastante, porque havia discórdias, mas antes de tudo, havia os princípios... Ocorreu um incidente: existiu uma carta, você deve saber sobre ela, do Dante...
D: Do Dante.
L: ... essa carta não deve existir mais; ela deve ter sido rasgada. Esta carta apresentava posições bastante contrárias à formação da SBEM da forma como vinha sendo encaminhada e ...
D: Que a Ema trouxe para a reunião da Regional São Paulo.
L: É. E teve também uma declaração de Maria Laura Leite Lopes que dizia que talvez não fosse o momento para a formação da Sociedade. Constituiu-se um grupo de trabalho, para a formação da SBEM, que acabou se dividindo: uma parte defendia tenazmente a presença de professores de Primeiro e Segundo Graus na formação da Sociedade Brasileira de Educação Matemática, sendo o Baldino um dos "cabeças" deste grupo, com a nossa participação; e uma outra parte que tentava formar uma Sociedade elitista, tentava formar um grupo de doutores que decidisse como as coisas iriam funcionar. Mas, se existisse um só grupo, o processo democrático não teria se desenrolado. Nem todos os que defendiam uma Sociedade elitista expunham isso declaradamente, como o fez Dante.
D: O Dante declarou isso?
L: Declarou através da carta. Ele chamou as pessoas que estavam organizando a Sociedade de novatos aventureiros. Inclusive essa expressão ficou bem marcada por ser ofensiva. Depois aqueles que defendiam uma Sociedade elitista acabaram encampando a Sociedade. O próprio Dante foi homenageado na Plenária de formação da SBEM!
D: Ele foi o primeiro presidente na verdade, porque a Nilza Bertoni era Gestão Provisória.
L: Na verdade a Sociedade acabou saindo a meio-termo entre um ponto e outro, entendeu?
D: Sim.
L: Saiu a meio-termo entre o pessoal que queria criar uma Sociedade totalmente descentralizada; a ideia é que não existisse... nem sei como é que está funcionando, mas me parece que no Estatuto final saiu que não existiria uma Sede, que a Sede seria itinerante, a Sede da Sociedade não seria em São Paulo, não seria no Rio, ela iria mudar de lugar periodicamente; na tentativa de descentralizar totalmente. A Sociedade acabou saindo a meio-termo. As pessoas que eram contra essa estrutura, acabaram sendo o primeiro Presidente[2], por exemplo. Mas se vão aí vinte anos, muita coisa já me escapou da memória. Eu fiz parte da Comissão de Sistematização, fiz parte da Regional Rio, participei como delegado na Nacional. Deste modo acompanhei bastante a formação da SBEM. Quanto ao processo de aceitação das propostas de formação do Estatuto, eu achava fantástico; qualquer um podia fazer proposta e mandar para a Comissão de Sistematização, que se reunia no Colégio Wakigawa, na rua Gago Coutinho, 25. Lá havia uma sala com três quadros-negros. Nós colocávamos as propostas escritas nos quadros-negros e tentávamos juntá-las e dar uma redação a elas. Lembro-me que foi decidido o seguinte: nenhuma proposta poderia ser feita em plenária, porque era uma excelente forma de travar o funcionamento da plenária fazer uma proposta de estatuto no meio dos trabalhos da plenária.
D: Ficar discutindo.
L: Ficar discutindo vírgulas. Teve uma vez que eu achei fantástica: a gente gastou uns vinte minutos discutindo se um "a" tinha crase ou não, porque alterava o significado da redação, e o que se fez? Lembro-me de que eu era presidente de mesa e eu "baixei", "bati o martelo": "Manda a 'crase' para a Comissão de Sistematização". E foram duas propostas à Plenária seguinte, uma com crase e outra sem crase, pois uma das funções das Plenárias era ler a redação dada pela Comissão de Sistematização e decidir entre uma ou outra. Por casos como este, passou-se a não aceitar propostas de estatutos nas plenárias. Qualquer proposta tinha que ser mandada por escrito para a Comissão de Sistematização. Esse trâmite, eu achei fascinante, porque constituiu um processo que julgo bastante democrático na formação da Sociedade.
D: Eu já estou escrevendo o texto da tese e várias passagens, eu não inventei, tem documentos e está clara a preocupação de construir pela base.
L: É.
D: Apesar de que houve...
L: Teve gente que não queria isso, falava mesmo que uma Sociedade nacional ligada à Educação tinha que ser feita por pessoas competentes. Uma pessoa competente tem que ser quem? Tem que ser mestre, doutor, segurando uma estrutura elitista, está certo? Qualquer um tem o direito de pensar dessa forma. Mas penso que a formação foi bastante democrática, que a Sociedade saiu a meio caminho das duas coisas: não foi uma Sociedade feita por professores de Primeiro e Segundo Graus...
D: Mas também não é uma Sociedade elitista.
L: ...mas não é uma Sociedade na qual eles estão excluídos. Eles podem participar com o mesmo direito de voz e voto que qualquer mestre ou doutor.
D: E nas reuniões que vocês faziam aqui no Rio de Janeiro, eu me lembro das leituras de vossas Atas, que tinham toda uma tática de envolver mesmo, de estar chamando esses professores. Lembro-me de um Curso ministrado pelo professor Marcelo Borba, que era uma forma de atrair pessoas; a reunião para se debater o Movimento de Educação Matemática e o Pró-SBEM acontecia na sequência.
L: Sabe que eu...
D: E vocês conseguiam aglutinar professores?
L: Participar de reuniões com algumas pessoas que imaginavam formar uma sociedade tendo essas próprias pessoas como centro da sociedade, por vezes, chegava a ser engraçado. Lembro-me de uma discussão: "Que dia vai ser a próxima reunião?". Aí começou a discussão: "Não, tal dia eu não posso, não esse dia eu vou ter não sei o quê lá". E aí o grupo que buscava uma formação pela base, interviu: "Não, mas espera um pouco, nós estamos decidindo em que dia vamos chamar os professores para uma reunião ou em que dia nós vamos fazer uma reunião entre nós? Porque não interessa qual de nós pode e qual de nós não pode estar aqui na próxima reunião; o que interessa é em qual dia nós vamos ter o maior números de professores possível". Então, marcar, por exemplo, em uma terça-feira à tarde, nós teríamos meia dúzia de pessoas. E quem são? Pessoas que podem ser liberadas de uma universidade para ir a uma reunião em uma terça-feira à tarde, ou uma terça-feira à noite. Então as reuniões começaram a funcionar nos finais de semana, que é um horário no qual se consegue chamar professores de Primeiro e Segundo Graus para uma reunião. Nós fazíamos, sempre tentávamos fazer, uma atividade, como jogos com materiais concretos, para atrair os professores. Sempre que possível, precedia à reunião uma palestra, alguma coisa desse tipo.
D: Um atrativo.
L: Sim. E em seguida nós fazíamos a reunião... porque aqui entre nós, reunião para discutir estatuto não é lá muito agradável, certo? Mas nós estávamos lá para discutir o Estatuto. Quem vinha acompanhando a formação do Estatuto desde as primeiras reuniões acabava envolvido e acabava ficando para participar do desenrolar das discussões. Mas, para uma pessoa que chegasse no meio do caminho, era algo extremamente desgastante, e precisávamos de bastante gente.
D: Tem que ser sensato.
L: Daí a ideia do atrativo que precedesse a reunião propriamente dita. Nem todos que participavam da atividade ficavam para a Plenária, mas gradativamente ia aumentando o número de participação e as pessoas iam sabendo que a Sociedade estava sendo formada; buscavam informes. Era importante não só participar para decidir o Estatuto, mas participar ao saber que a Sociedade existia, que a Sociedade estava sendo formada, que existia uma articulação para formação de tal Sociedade. E era fundamental que os professores de Primeiro e Segundo Graus disso soubessem.
D: Uma coisa que eu percebi nos estudos dos documentos, Ledo, não sei se você me confirma ou não, parece-me que foi uma coisa espontânea, que cada regional colaborou da maneira que podia com as pessoas que estavam envolvidas, com as características que tinham. Então foi espontâneo cada regional contribuir de um jeito. O primeiro esboço do Estatuto veio do Rio Grande do Norte, pessoal do Araújo. Depois, quem mais trabalhou esse Estatuto na verdade foram vocês aqui do Rio de Janeiro...
L: Não sei se a maior contribuição, enquanto proposta, veio do Rio, a maior contribuição enquanto organização veio do Rio, porque a Comissão de Sistematização era aqui.
D: Era aqui.
L: Todas as propostas do Brasil inteiro chegavam as nossas mãos. Chegávamos à sala de aula e organizávamos as propostas: pegávamos todas as propostas que se referiam a, por exemplo, "Categoria de Sócio". Escrevíamos todas elas no quadro-negro e checávamos o que elas tinham de comum e o que distinguia uma das outras. Aí conseguíamos elaborar, por exemplo, três redações para serem votadas, uma contra a outra: "Essa proposta aqui satisfaz ao Rio Grande do Sul, satisfaz a UFF, satisfaz não sei a quem mais". Criávamos uma redação. Quando chegávamos à Plenária, apresentávamos o que foi feito na Sistematização, como se chegou a cada redação. Se a Plenária concordasse com a sistematização feita, partia-se para a votação.
D: Mas isso nas reuniões da Regional Rio ou na Comissão de Sistematização?
L: Na Comissão de Sistematização criava-se a redação. Os trabalhos da Comissão de Sistematização eram encaminhados para todos os envolvidos com a formação da Sociedade. A Regional Rio decidia quais as propostas que apresentaria como suas. Tem aqui, inclusive, um organograma. Quando fomos para Belo Horizonte, levamos uma proposta de organização de Sociedade que foi bastante interessante. Deixa-me ver se consigo achar aqui - olhando nos documentos; está aqui. Apareceram propostas da Comissão de Minas Gerais. Nós chegamos com um organograma feito, com uma proposta de organograma montada, e Minas Gerais tinha uma outra proposta que não estava posta na forma de organograma. Começamos a contrapor as propostas e discutir como a organização poderia ser. Tinha gente que queria uma centralização: com sede em São Paulo, por exemplo. Fórum jurídico tinha que ter. Se não me engano, este é em São Paulo. Os problemas jurídicos que poderiam ocorrer...
D: É Maringá.
L: Maringá?
D: É. O fórum é em Maringá.
L: Agora, era necessário ter o local físico, fixo, para a Sociedade? O Rio de Janeiro propôs que não. Nós propusemos que fosse itinerante; se a direção da Sociedade fosse no Rio, por exemplo, a UFRJ, talvez, poderia selecionar uma sala e essa sala seria a Sede. Uma próxima vez, a Sede seria no Rio Grande do Sul ou em Pernambuco. Dependendo da formação da diretoria da Sociedade, a Sede iria se deslocando.
D: Isso acabou acontecendo, porque depois ela foi para Blumenau, quando a Salett assumiu a Gestão. Teve uma época em que estava em Rio Claro, na época em que estava o Dante e o pessoal de Rio Claro, depois veio para PUC, porque já são duas gestões com o pessoal da PUC. Agora ninguém sabe o que está acontecendo, parece que vai para Pernambuco[3].
L: Eu estou afastado há muito tempo; na verdade, eu estou afastado desde a Fundação.
D: Você falou: "Estou fundando uma Sociedade...".
L: "...da qual eu não vou participar".
D: "...da qual eu não farei parte".
L: E na época eu era bastante purista, eu era o PT inicial. Então, quando eu vi Dante ser homenageado, Maria Laura Leite Lopes presidir a Plenária no dia da fundação, e todo mundo bater palma para aqueles que tinham trabalhado no sentido contrário... porque, na época, eu enxergava assim. Não diria agora que tenham realmente trabalharam em sentido contrário ao da fundação da Sociedade; mas, na época, eu entendia que sim. Na verdade, tínhamos visões diferentes do que deveria ser o processo de construção de uma sociedade amplamente democrático. Existiam visões diferentes. Até hoje acho elitista o encaminhamento proposto por eles, mas possivelmente, se fosse hoje, eu não me afastaria da Sociedade por causa disso.
D: O Bigode fala algo parecido também. Fala: "Olha, isso foi o que eu achei e disse na época, hoje talvez não fosse a mesma coisa".
L: Na época eu tinha uma posição bastante purista, inclusive eu era do PT ferrenho. O meu apartamento funcionava como sala de reuniões do PT. Eram reuniões que você trabalhava muito com a base. E havia uma coisa com a qual eu não conseguia conviver, e não consigo até hoje: nem todas as pessoas que propõem trabalho se propõem a trabalhar, arregaçar as mangas e mandar ver. É comum encontrar pessoas que se propõem a assinar o trabalho do outro e isso me irritava, isso me irrita. Essas pessoas aparecem rapidinho nas reuniões e logo se despedem. Querem os nomes presentes nas listas de frequência, querem ser os primeiros a assinar as Atas. Esse comportamento cria documentação, cria a historiografia, para que a história venha a ser contada de forma conveniente a essas pessoas. Isso sempre me irritou e me irrita até hoje, e isso é tremendamente comum. E esse tipo de coisa, na época da formação da SBEM, ficava meio claro, até por que nem todo mundo estava com o pique que alguns de nós apresentava. Tinha gente que aparecia na reunião que, sinceramente, eu não sei o que fazia lá. O que estava fazendo? Não participava, não abria a boca, não fazia nada. E qual a função? Ter o nome na ata? E eu fazia parte de um grupo no Rio de Janeiro que se caracterizava pelo trabalho - enfático -, era o grupo chamado G-RIO. No Estatuto do G-RIO havia uma cláusula que dizia que se o trabalho parasse, o grupo se desmontava, se extinguia. O G-RIO não podia existir de forma aparente. Éramos obrigados a manter um curso e, se esse curso deixasse de existir por três semestres seguidos, o Estatuto detonava a Sociedade. O G-RIO era extremamente ligado à questão do trabalho. Minha participação no PT e no G-RIO fomentou meu purismo político. Meu afastamento da SBEM não foi politicamente inteligente. A ideia da necessidade de nomes de peso para o desenvolvimento da SBEM não me convencia. Eu não precisava (aspas na expressão "não precisava") do apoio desses nomes para desenvolver minhas atividades. Eu bancava as minhas passagens. Não estava precisando de ninguém para bancar os meus estudos, as pesquisas que eu fazia eram por conta própria. Eu era um professor, como sou até hoje, do Ensino Fundamental e Médio. Então, com a posição política que eu tinha, o que aconteceu? Na época eu pensei: estou fora, não posso participar de uma Sociedade que ajudei a fundar. Continuo dizendo, foram-se vinte e poucos anos[4], não sei se hoje ...
D: De fato depois você se afastou.
L: Afastei-me e já pensei em entrar em contato novamente. Mesmo na época, eu não achava que estava cometendo um erro ao participar da fundação da Sociedade. Foi muito bom fundar a Sociedade, só que me parecia que ela não iria seguir o rumo pelo qual eu estava lutando, mas, venhamos e convenhamos, o processo democrático nunca segue o rumo que se quer: você o puxa para o seu rumo, mas tem gente puxando para o outro lado, e vai sair algo no meio desse caminho. Quanto mais você fizer, ele vem para o seu lado, quanto mais força o outro tiver, mais ele vai para o lado de lá. Possivelmente teria sido muito mais inteligente ter ficado na Sociedade e lutado para puxar para o lado de cá, em vez de "Oh, se é para esse pessoal carregar, que carreguem sem mim".
D: Tem um grupo de pessoas aí, pensando seriamente em constituir uma organização à parte, não uma sociedade, e se preparar par reivindicar a direção da SBEM em 2007, vai ficar três anos se preparando e discutindo programa, caráter da entidade e tal, quem sabe você recebe um convite qualquer hora dessas.
L: Eu me afastei, eu me afastei bastante; pessoalmente foi fantástico participar da formação da SBEM, até porque foi uma "coisa de louco": eu saía da sala de aula para reuniões. Ia dar aula levando uma mala de viagem, pegava um ônibus, fazia reunião dentro do ônibus. Aquela reunião de Belo Horizonte foi uma coisa de maluco: nós saímos da sala de aula, fomos para a rodoviária, fizemos uma reunião dentro do ônibus...
D: Olha que legal!
L: ...com presidente de Mesa e tudo, de noite, de madrugada, metade de trás do ônibus...
D: Pessoal do Rio.
L: Pessoal do Rio. Metade do pessoal do ônibus, a parte de trás...
D: Você, Tânia...
L: Eu, Tânia, Dora, Baldino, Vanildo... metade do ônibus para trás éramos nós. O motorista separou metade do ônibus, pedimos para que ele acendesse a luz e constituímos a Mesa. Sentamos e fizemos a reunião dentro do ônibus, na viagem, de madrugada. Aí, quando deu umas duas horas da manhã, ninguém aguentava mais, já tínhamos tirado o que levaríamos para a Nacional. Seis horas da manhã tomamos o café, fomos para a reunião, doze horas seguidas de reunião, na qual tiramos a proposta de organograma para a Sociedade. No dia seguinte todo mundo estava cansado, não foi brincadeira não! O Baldino chegou a colocar palito na vista...
D: ... - uma forte gargalhada.
L: ... palito na vista, porque a gente tinha virado a madrugada fazendo uma reunião dentro do ônibus e pegamos doze horas seguidas de reunião em Belo Horizonte. Como a viagem era longa: "Vamos decidir tudo aqui, dentro do ônibus". Eu voltei de ônibus. Dormi no ônibus com a mala e já saí do ônibus para a sala de aula.
D: Quando voltou.
L: Quando voltei já...
D: Para dentro da sala de aula.
L: ...eu não passei em casa. Fiquei três dias sem ir a minha casa, fui da sala de aula para Belo Horizonte e voltei de Belo Horizonte para sala de aula.
D: Foi nessa reunião de Belo Horizonte que o pessoal de Pernambuco, que a Terezinha...
L: Carraher.
D: ... Carraher, apresentou uma proposta bastante divergente do caminho que estava sendo adotado até o momento, que reivindicava uma SBEM...
L: Mais elitizada.
D: Mais elitizada.
L: O que eu também achei fantástico foi ver o poder que se pode ter. A formação da Sociedade navegava em águas tranquilas até ocorrer a articulação de algumas pessoas apresentando propostas divergentes... não só do Rio, mas muito aqui no Rio; até por conta de existirem sete grupos de estudo de Matemática no Rio de Janeiro, e alguns com um processo bastante democrático, como o G-RIO ...
D: Que era o quê? Era o GEPEM...?
L: Era GEPEM, G-RIO, tinha um da UFF, tinha o Centro de Ciência. Boa parte deles tinha uma estrutura centralizada, com um presidente, diretoria fixa, instituição...
D: Eu lembro que na...
L: Mas o G-RIO não tinha instituição nenhuma por trás. No sindicato funcionava um grupo que também estudava e não tinha instituição nenhuma por trás, eles usavam o espaço do sindicato.
D: Sindicato dos professores.
L: É.
D: E quem era? O Pupim[5] que estava na...
L: Não, não. Não me lembro mais de quem formava este grupo do sindicato. Esses grupos de estudo também deveriam ter sido registrados, documentados.
D: A primeira reunião da Regional Rio foi no dia 21 de março de 1987 e foi na Universidade Santa Úrsula. Houve uma reunião três dias depois no sindicato, porque, à reunião, vocês consideraram que foram poucas pessoas, foram vinte e poucas pessoas, então chamaram uma reunião para o dia 24 de março no sindicato.
L: Eu não me lembro em que momento eu entrei. Não sei se eu estava nesse dia, eu acho que foi um pouquinho depois; não me lembro em que momento eu comecei a participar para valer.
D: Das reuniões aqui?
L: Das reuniões. Eu não sei se eu estava desde a primeira.
D: Mas você não estava no I ENEM na PUC de São Paulo?
L: Sim, estava. Mas não me lembro de ter participado de reunião lá.
D: Ah, você entrou depois.
L: Acho que sim. Acho que eu entrei depois. Acho que eu entrei aqui pelo Rio, quando começou a ter reunião no Rio.
D: Você já fazia parte do G-RIO.
L: Já fazia parte do G-RIO.
D: E o G-RIO entrou de cabeça na...
L: Entrou, entrou de cabeça.
D: Porque o Baldino fez parte da...
L: A principal figura do G-RIO era o Baldino.... E eu acredito que foi por aí mesmo. O Baldino deve ter levado: "Oh, a SBEM está se formando, tem interesse em participar?". Entrei eu, entrou Dora, entrou o Vanildo. E o que eu achei interessante é que a impressão que eu tinha é que existia um grupo que acreditava que iria montar uma Sociedade com facilidade, sem nenhuma oposição: "Vamos criar a nossa Sociedade aqui, vamos sentar aqui, vamos tomar um cafezinho...".
D: Aquela ingenuidade que a gente tem, não é?
L: É, e aí o que é que aconteceu?
D: ...todo mundo irmão.
L: Eu tinha a impressão de que algumas pessoas acreditavam que formariam uma sociedade sem sofrer oposição. Um outro grupo se formou e falou: "Espera um pouco, se é uma Sociedade Brasileira de Educação, então tem que ter professor de Primeiro e Segundo Graus". E formou um rolo compressor. Aí, o primeiro grupo falou: "Espera um pouco, vamos nos articular, porque se não tomarmos cuidado, vão tomar conta dessa Sociedade". Nesse momento, o processo democrático começa de fato, porque, se nós entrássemos sozinhos com o rolo compressor e não tivesse oposição nenhuma, ninguém fizesse nada, o processo democrático não se estruturaria. Essa é a verdade, está certo? Se você vai sozinho, você faz do jeito que quiser, vai nascer outro grupo de irmãos, sai João e entra José e, depois, sai José e entra João. E talvez o auge da brincadeira tenha se dado exatamente em Belo Horizonte.
D: Com a Carta de Pernambuco[6].
L: Foi então que nós percebemos que: "Olha, vai ter que articular". Acho que foram quatorze horas de reunião, para se ter ideia, reunidos quatorze horas. Aí faz proposta, contraproposta, proposta, contraproposta: foram quatorze horas reunidos.
D: E daí saíram com uma decisão, só com uma linha política.
L: Saímos. Aquela foi...
D: Que você acha que foi intermediária. Ou já ...?
L: Eu acredito que saiu meio-termo, "nem tanto ao céu nem tanto à terra". Outra coisa que eu acho interessante, hoje eu vejo isso bem...
D: Porque, na prática, os professores de Primeiro e Segundo Graus é que ficaram praticamente existindo somente no Estatuto.
L: É. Isso aí que eu estou falando. Se de repente não tivesse saído da Sociedade, e não foi só eu que fiz isso, se tivesse entrado na briga, a briga não pararia na formação da Sociedade, teria continuado.
D: A Assembleia que mudou o Estatuto em Serra Negra, a inscrição era proibitiva, até mesmo para professor universitário.
L: Eu percebia que isso...
D: Isso é recente, agora.
L: Eu percebi que esse tipo de coisa iria acontecer pela forma que a Sociedade foi concluída. É por isso que ela está assim. Meu purismo não me permitiu ficar fazendo determinados tipos de concessões, purismo da época, não sei se seria jogo fazer isso hoje; politicamente eu não sei se foi jogo. Na época não poderia fazer outra coisa, porque dependia das minhas convicções.
D: Era o que parecia mais razoável.
L: Mais razoável. Daí eu me coloquei contrário e tenho certeza que muita gente também. Outra coisa que eu acho interessante é o seguinte: hoje à distância, eu vejo, que mesmo as pessoas com as quais eu me desentendia... Você quer sair daqui? (estávamos próximos a uma cantina que começou a tocar música em volume alto nesse momento; deslocamo-nos para outro lugar, o pensamento ficou incompleto).
D: Eu acho melhor.
L: Hoje eu tenho certeza de que, mesmo as pessoas com as quais eu me desentendia, estabeleciam uma relação de respeito em relação à gente. Brigavam, discordavam, mas reconheciam o esforço na elaboração do trabalho. Tenho certeza de que eles reconheciam. Era essa briga que ficava clara: existia um grupo que queria um tipo de trabalho e outro grupo queria outro tipo de trabalho, e a Sociedade saiu no meio disso aí.
D: É, foi democrática mesmo!
L: E se não houvesse pessoas se contrapondo, se fôssemos só nós brigando para formar uma Sociedade a partir dos professores, a Sociedade não teria saído, também não seria democrática.
D: É interessante isso que você está falando, e eu estou escutando aqui no fundo: o Encontro foi boicotado pela UNE, pelas correntes que estão muito ligadas ao governo; e aí um esforço danado da gente para que não tivesse só a gente aqui, ficar falando sozinho para nós mesmos não tem graça.
L: Se for de nós para nós mesmos, façamos assim: nos reunimos numa sala, compramos umas cervejas, montamos o Estatuto, apertamos as mãos e acabou.
D: É.
Nesse ponto terminou um lado da fita. Como Ledo tinha compromissos anteriormente firmados, aproveitamos para acertarmos rapidamente a questão da cópia dos documentos e trocar mais algumas informações pertinentes. A Entrevista acabou desse modo.
[1] Encontro do Rio, Ledo levou as copias na UFRJ.
[2] Ledo está falando do Dante, considerando a Gestão de Nilza Bertoni como sendo "Provisória".
[3] De fato foi para Pernambuco, na Presidência Paulo Figueiredo, professor da UFPE.
[4] Na verdade 16 anos.
[5] Gilson Pupim, Presidente do Sindicato dos Professores em uma certa época. A pergunta se referia a se tal época teria sido essa em questão. Ledo afirmou que não.
[6] Uma carta que continha uma proposta de Estatutos, uma proposta de Entidade, um pouco elitizada, voltada mais aos pesquisadores das Universidades.
Denizalde me chamou a atenção de que meu nome estava grafado errado na Ata de Fundação da SBEM. O nome que consta é Lhedo Vaccaro Machado. Ele incentivou-me a solicitar a devida alteração, o que não fiz e não farei. Uma vez alguém me perguntou se eu tinha algum apelido, e eu respondi: "Você acha que uma pessoa que se chama 'Ledo' precisa de apelido?" Quem sabe, um dia, eu não venha a assumir Lhedo como alcunha?